O ARTISTA DA PÁ

Neste terceiro volume dos “Contos de Kolimá”, os relatos de Chalámov mergulham o leitor, passo a passo, no mundo sombrio da morte em escala industrial. Cada página, cada parágrafo, nos conduz impiedosamente pela tortura inimaginável da luta pela sobrevivência em uma estrutura idealizada para esmagar o corpo e o espírito de milhões de indivíduos. Em meio a esse pesadelo tão real, a pá simboliza as jornadas diárias de, no mínimo, dezesseis horas escavando o solo permanentemente congelado e pedregoso das minas. O “artista” é o condenado exercendo a arte de não morrer, quando tudo e todos em volta o convidam a buscar o próprio fim.

No conto “Como começou”, o autor se interroga sobre os sinais que teriam anunciado a transformação dos campos de trabalhos forçados em campos de extermínio. A mudança do vento, sinalizando um inverno ainda mais implacável? Uma nevasca, que obstruiu a estrada principal? A repentina chegada de tropas numerosas? Mas, não há resposta. Subitamente, os prisioneiros deixam de receber dinheiro pelo trabalho forçado. Subitamente, a ração alimentar é diminuída. Sem aviso, desaparecem todos os presos políticos de um barracão, o vento balançando sua porta aberta, revelando a escuridão e o vazio de um lúgubre jazigo. De Moscou, do gabinete de Stalin, chegam leis mais duras, violentas. Naquele inverno de 1937-1938, começam os fuzilamentos em larga escala. Tudo conduzia ao fuzilamento: elogiar um romance russo publicado no exterior, reclamar do trabalho pesado, fazer comentários sobre Stalin, permanecer em silêncio numa exaltação ao ditador, ser delatado por qualquer um… tudo dentro da lei. O assassinato em massa era, agora, a lei.

E, de algum modo, a pá estava no centro de tudo. A pá, cujo cabo congelado deixa dos dedos permanentemente curvados. A pá, que feria o solo frio e rochoso, incansavelmente, em busca de ouro. A pá, cavando as minas a céu aberto. A pá, cavando imensas covas coletivas, onde cadáveres dos condenados eram enterrados nus e sem identificação. Em Kolimá, para sobreviver, era preciso ser um artista da pá. Um artista da pá escapava da morte pela fome, pelo frio, mas muitas vezes não escapava dos golpes imotivados: “Todos batiam nos trabalhadores: faxineiros, barbeiros, chefes de brigada, educadores, carcereiros, soldados de escolta, monitores, administradores, supervisores – qualquer um”. Espancamentos até a morte.

Como começou a indiferença ao extermínio de milhões? Como começou o negro mergulho na monstruosidade humana? Mas não há resposta…

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