O título do segundo volume dos “Contos de Kolimá” faz referência ao rio em torno do qual se espalhavam campos de trabalho forçado, onde o autor experimentou, junto de milhares de outros presos políticos (intelectuais, engenheiros, militares, escritores, artistas), o lado mais monstruoso da vida sob o regime stalinista. Na margem esquerda do Kolimá, ficava o hospital do complexo carcerário. Ali, nos últimos anos de sua pena, Chalámov conseguiu se formar como paramédico, onde atuou ainda por algum tempo como contratado já liberto, para juntar dinheiro antes de retornar a Moscou. Uma angustiada tentativa de estabelecer um limite sólido entre a normalidade e a monstruosidade é o que costura os relatos deste volume. Essa busca pode ser percebida na seleção de contos. Alguns contam histórias terríveis dos campos; outras, histórias de seu tempo no hospital, onde experimenta algo mais próximo de uma “vida normal”. Em alguns outros relatos, gestos de humanidade surpreendem o leitor, quando aparecem em narrativas de puro horror.
A preocupação em definir a normalidade está na origem do Mito do Monstro. Sua definição, sempre instável, mas necessária para delimitar comportamentos aceitáveis e comportamentos monstruosos, alcança as raias do absurdo e do paradoxal no contexto extremo de Kolimá. No conto “Meu processo”, durante a visita de uma autoridade, os presos imprimem um ritmo um pouco mais acelerado nos trabalhos na mina. Sabem que se interrompessem o trabalho, seu chefe de brigada seria destituído e cairia em desgraça. Mas, “mais por gentileza, do que por medo”, fingem entusiasmo para poupar seu algoz de todos os dias. No mesmo relato, o autor, no limite de suas forças, é enviado repetidas vezes ao hospital, mas é sempre despachado de volta para a mina: as regras determinavam uma cota de condenados por crime político que poderia ser internada, e a cota estava cheia. Dentro daquela normalidade, ele era, de novo e de novo, enviado para um trabalho que poderia mata-lo.
Em “Lida”, a pena do protagonista se aproxima do fim. Sua condenação estampava a sigla KRTD, indicando crime político. A letra “T” sinalizava uma punição ainda mais rigorosa e dificilmente um condenado marcado com ela conseguia ser libertado. Quase sempre, os funcionários do campo, em todos os níveis, criavam uma situação para prolongar a pena que se aproximava do fim, muitas vezes levando o quase liberto à morte. Ao fim da história, ele pede à datilógrafa que remova a famigerada letra de seu processo na redação do pedido de soltura. Lida atende seu pedido, salvando sua vida. Para os humanos, mesmo em um inferno como Kolimá deve haver algum tipo de normalidade, nem que seja apenas para ocultar toda a monstruosidade da situação. Mas o horror reprimido pelas convenções sempre encontra um modo de ressurgir, como os milhares de cadáveres enterrados e preservados ao longo de anos pelo solo congelado, que brotam na superfície das encostas e rolam em direção aos vivos, no conto “Lend-lease”.