CONTOS DE KOLIMÁ

“Contos de Kolimá” é o título da série e do primeiro livro de breves narrativas de Varlam Chalámov (1907-1982), sobre os quase vinte anos em que foi submetido a trabalhos forçados sob o regime stalinista da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Os outros livros da série incluem, pela ordem, “A margem esquerda”, “O artista da pá”, “Ensaios sobre o mundo do crime” e “A ressurreição do lariço”. Numa prosa direta e sem floreios, o autor descreve a vida nos campos de concentração soviéticos, onde, como preso político, trabalhou dezesseis horas por dia nas minas de ouro de Kolimá, região desolada e gélida no extremo leste da Sibéria. Sob temperaturas que chegavam aos sessenta graus negativos, escavando no “permafrost”, camada eternamente congelada do solo, recebendo uma ração alimentar miserável, submetido à truculência de criminosos comuns e de chefes de campo e carcereiros brutais, sempre coberto de percevejos, centenas de milhares de homens e mulheres sobrevivem em condições que colocam em questão a identidade humana diante de limites físicos, morais e espirituais.

O questionamento do conceito de “humano” aparece de forma recorrente nas quase duas mil páginas desse relato autobiográfico e documental, de poucas concessões estilísticas. Chalámov pondera que o que “humanizou o macaco” não foi o dedo opositor, nem o desenvolvimento do cérebro ou o domínio do fogo, nem a alma. Cães, e ursos se comportam com mais inteligência e caráter do que o homem. Para ele, o desenvolvimento do homem só foi possível devido a sua capacidade física de resistir às mais duras condições: tornamo-nos humanos por nossa resistência física superior. Em condições onde um cavalo não dura um mês, homens e mulheres, famintos, esquálidos, de pés apodrecidos pelo gelo, dedos permanentes curvados pelos cabos das pás, anêmicos, sistematicamente humilhados e brutalizados resistem, sobrevivem, encontrando a morte somente quando já não têm músculos aderidos aos ossos, quando se suicidam, ou quando são executados sob os pretextos mais estúpidos e absurdos. Para ele, antes de mais nada, o que nos torna humanos é nossa capacidade física superior.

O comportamento, não apenas de chefes, carcereiros e presos do crime organizado, mas também dos presos comuns, nos deixa estarrecidos diante de sua moralidade monstruosa: somos humanos porque nos comportamos de um modo que nenhum animal é capaz. Algozes e condenados, indistintamente, surram alguém até a morte pelas razões mais banais, como uma peça de roupa rasgada, ou um pedaço de pão. Ou apenas pelo desprezo pela vida. Médicos dos campos atuam com o mais frio sadismo, torturando presos com técnicas científicas para encontrar alivio no próprio ressentimento. Muitas vezes, destroem o outro em seu espirito e em seu corpo, apenas como forma de diversão. Todos, para sobreviver, se despem de qualquer empatia, afeto, amizade. No universo sombrio de Kolimá, quase sempre é o gesto monstruoso que permite preservar o que resta de nossa humanidade.

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