MONTEIRO LOBATO PARTE IV – QUAL BRASIL?

Com este quarto post termino minha discussão sobre Monteiro Lobato. Mesmo comentando sobre sua trajetória pública como editor, empresário e jornalista, nosso foco foi sua obra literária. Nesta Página, nosso interesse é analisar a arte, e não o artista como indivíduo. A obra não se confunde com seu criador. Gênios da música, das letras e das artes plásticas podem agir de modo condenável, e isso não deve diminuir o valor de sua criação. Sempre política, a arte a transcende. A obra de Monteiro Lobato é rica e valiosa. A arte nasceu da necessidade de explicarmos o mundo e a nós mesmos. A arte traz em si, sempre, a sombra do monstro. 

A identidade de toda comunidade vive em constante redefinição. A autoimagem de uma coletividade se faz num processo dinâmico, em conformidade com transformações econômicas, políticas e culturais. Há momentos na história de um país, entretanto, em que eventos históricos exigem uma readequação e redefinição mais radicais de como um povo se vê. Monteiro Lobato viveu num desses momentos, quando o Brasil transitava do regime monárquico para o republicano, a escravidão era legalmente abolida e se inaugurava o século XX. Este contexto ajuda a compreender a sua ambiguidade ideológica e suas contradições em suas propostas para a transformação do nosso país. Culto, inteligente e empreendedor, combateu as proposições estéticas dos modernistas com base em seus preconceitos, mas, ao mesmo tempo, se mostrou capaz de reconhecer na produção daqueles artistas e escritores um talento verdadeiro e importante. Depois de sua crítica arrasadora à exposição de Anita Malfatti, aproxima-se dos modernistas em vários momentos, seja atestando a importância de colegas como Mário de Andrade, seja, como editor da Monteiro Lobato & Cia, encomendando à Anita Malfatti as capas para “Os condenados” (1922), de Oswald de Andrade e “O homem e a morte” (1922), de Menotti Del Picchia. Mesmo sem adotar a estética dos modernistas, deles se aproxima e, mesmo, antecede-os em sua afirmação da necessidade de ultrapassar a forma literária do romantismo brasileiro. Nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, combinando a verossimilhança do mundo real com a mais pura fantasia, cria um universo que rompe limites geográficos e estabelece um tempo de extensão infinita, que antecede o tempo e espaço mítico do sertão de Guimarães Rosa.

Não é difícil encontrar, também, uma afinidade entre os monstros que rodeiam Pedrinho, Narizinho, Dona Benta e Tia Nastácia e o principal monstro dos modernistas: “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade. O jogo do faz-de-conta que orienta as aventuras do Sítio muito se assemelha ao funcionamento das peripécias do nosso “herói sem caráter”, que é índio, negro e que, depois de se banhar na poça do pé do gigante Sumé, vira europeu. Neste livro, em que a história também transcorre em uma geografia e um tempo míticos, Andrade compõe uma colagem de lendas e mitos dos povos amazônicos, tradições, religiões, falares, comidas, lugares, hábitos, fauna e flora do Brasil. Seu objetivo é criar uma narrativa unificadora para um país que começava a se identificar como nação, em que nossa multiplicidade se condensasse numa identidade para a cultura brasileira. E do mesmo modo que Lobato, Andrade resgata monstros muito brasileiros, como o Gigante Piaimã Comedor de Gente e Ci, mãe do mato, da tribo das icambiabas, guerreiras que não aceitam os homens.

Às vésperas da terceira década do século XXI, o Brasil vive novo momento de transformações radicais, em consonância com o contexto mundial. As narrativas de um país que se iniciava moderno já não dão conta de nos explicar. A crise atual pede novos monstros, ou releituras de monstros antigos, como se vê em “Se7e monstros brasileiros” (2014), de Braulio Tavares, coletânea de contos que combina criaturas tradicionais, como o Bradador, o Papa-figo e a Porca de Soledade, com os contemporâneos zumbis. Coerente com as tensões que atualmente nos assombram, Tavares elimina a doçura dos monstros de Lobato, ou a leveza de Macunaíma. Suas histórias, em cenários atuais, apresentam criaturas ferozes, brutais e realmente assustadoras.

Deixe um comentário