O Golem de Praga, da lenda judaica, e Caliban, personagem shakespeariano, são monstros situados entre o fim da Idade Média e o início da Era Moderna. Mas Caliban é muito mais complexo, evocando novas e inesperadas leituras ao longo dos séculos. Ele confronta e espelha quase todos os personagens principais de A tempestade, desestabilizando suas identidades explícitas. Filho de uma feiticeira, nativo de uma terra primitiva e distante, é por vezes sombrio e maligno, outras vezes digno e poético, outras, ainda, ridículo e patético. Ao mimetizar e parodiar tantos personagens, denuncia suas ambiguidades, fazendo do exercício para determinar suas identidades um trabalho rico e surpreendente.
Ao descrevê-lo de maneira tão vaga, Shakespeare abriu espaço para que em cada reapresentação da peça seu monstro fosse caracterizado das maneiras mais variadas. Caliban já foi representado como meio-animal, negro, indígena, figura semidemoníaca, habitante do Terceiro Mundo, entre tantas outras. Inicialmente, seu personagem era lido como símbolo de um estado humano primitivo, de caráter degenerado, ganancioso, indiferente à lei e lascivo. Com o desenvolvimento da teoria pós-colonialista na segunda metade do século XX, passou a simbolizar o modo como o europeu imaginava o Terceiro Mundo e suas populações. Inversamente, nas colônias e ex-colônias, Caliban passou a ser entendido de forma positiva, como símbolo da resistência do explorado contra o explorador, em análises e encenações em que era enfatizada a resistência deste contra o jugo de Próspero.
Analisado sob a perspectiva do Mito do Monstro, o que sobressai é que em suas mais variadas interpretações, do cristão decaído que ressurge melhor, do escravo que reconquista sua dignidade, do colonizado que recupera sua voz, do negro, do índio e do branco, do indivíduo que confronta seus temores e seus valores, Caliban é figura que sempre potencializa as questões da identidade. E como tal, constitui, indubitavelmente, uma das grandes metáforas deste Mito.