Desde sua origem no imaginário humano, monstros são inventados para permitir, que um povo, uma cultura possa separar simbolicamente o certo e o errado, o bem e o mal, o natural e o antinatural, enfim, o humano e o monstruoso. Mas, por ser esta uma tarefa impossível, suas histórias sempre têm o efeito inverso, deixando-nos, ao final, ainda mais confusos sobre nossa própria identidade. De tempos em tempos, aparecem monstros tão potentes em sua função, que suas histórias atravessam as gerações, mesmo que eventualmente passem por atualizações histórica e culturalmente necessárias. É o caso do Golem, criatura legendária que assinala as angústias dos europeus durante a transição da Idade Média para a Era Moderna, e o choque entre a concepção do ser humano como fruto da criação divina e um novo ser humano, capaz, ele próprio, de se igualar a Deus como criador. Cerca de duzentos anos depois, a lenda da criação de um monstro pelo Rabino Löwe ecoaria na história do Dr. Frankenstein e sua própria criatura. As angústias geradas pela chegada da primazia da Razão e do constante avanço tecnocientífico ainda hoje nos atormentam. Daí tantas narrativas novas inspiradas nessas duas histórias. Não apenas nas incontáveis filmagens e recriações mais diretamente baseadas na lenda do Golem e na novela de Mary Shelley, mas também releituras menos óbvias, em filmes como “Westworld” (1973), “O homem bicentenário” (1999), “A. I. – inteligência artificial” (2001) e “Ex-machina: instinto artificial” (2014).
Drácula, o icônico vampiro de Bram Stoker, expressão do medo do cavalheiro vitoriano diante dos estranhos costumes da imigração oriental e das conquistas femininas na política, no trabalho e no sexo, segue gerando novas histórias sobre o medo do estrangeiro e dos novos costumes sexuais e definições de gênero. O medo dos instintos lascivos e violentos reprimidos no homem racional continua nos assombrando em novas releituras do médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Monstros mais recentes com grande influência cultural, embora com menor alcance, incluem Leatherface, Michael Myers, Freddy Krueger e Hannibal Lecter. E a melhor metáfora do mundo contemporâneo, um mundo sem passado e sem futuro onde avançamos como mortos-vivos, é o zumbi e suas hordas.
Em 2019, com “Curinga”, de Todd Phillips, o personagem título adquire uma complexidade que já lhe reserva um lugar na longa e rica tradição dos monstros canônicos do Ocidente. Criado como vilão bizarro das HQs do Batman, ganhou projeção entre o público com as performances de Jack Nicholson (“Batman”, 1989) e de Heath Ledger (“Batman – o cavaleiro das trevas”, 2008). Mas com Joaquin Phoenix no papel, o personagem ganha profundidade psicológica e contextualização social, o que o torna mais humano. E monstruoso. Sua condição de pobreza e doença mental, sua constante humilhação e abandono pelo Estado não gera empatia, nem justifica seu progressivo mergulho na crueldade e no crime. Não há justificativa para o assassinato a sangue frio. Mas, assim humanizado, potencializa sua função de monstro: colocar em questão a humanidade que o criou. Ao se erguer das trevas, este Coringa reelaborado projeta sobre todos o que temos de sombrio.
Nesta narrativa em que o monstro ocupa quase todas as cenas, o que vemos é uma sociedade violenta e corrompida em todos os níveis. Jovens que assaltam e agridem inocentes apenas por diversão. Colegas de trabalho e chefes indiferentes, impiedosos e traiçoeiros. Políticos e milionários que declaram seu desprezo pelos desfavorecidos. Mulheres, negras, deixadas à margem, até se tornarem indiferentes ao sofrimento alheio. Homens brancos bem empregados, que despejam toda sua frustração e ressentimento naqueles em condição vulnerável. Embora a Gotham City na tela remeta à Nova York dos anos 1980, não é difícil, aqui, associar sua violência a um Brasil em que jovens brancos incendeiam índios e mendigos. Em que governantes eleitos celebram a execução sumária dos pobres. A infestação de ratos em Gotham serve de perfeita metáfora à agressão ao meio ambiente por aqui, incentivada pelo governante de plantão.
A trajetória Arthur Fleck até sua transformação no Coringa não revela somente a sua psicopatia. Denuncia nossa própria passividade diante da violência, nossos próprios ressentimentos e disposição em tolerar o mal. Nossa desumanidade. Afinal, toda boa história de monstro não é sobre o monstro. É sobre a monstruosidade real e latente em todos nós.
Excelente análise! Exatamente o q filme nos apresenta. Amei
Muito boa análise mesmo.