Há setenta mil anos, ao se perguntarem pela primeira vez “quem sou?”, nossos ancestrais criaram a figura do monstro, para negarem em si tudo de insuportável, sombrio e repugnante, atribuindo a outro nosso lado monstruoso. Ao encerrar a última página do último livro dos “Contos de Kolimá”, não havia apenas percorrido suas duas mil páginas: estava assombrado pelo Horror, que só a grande literatura é capaz de transmitir, o Horror que só pode ser descrito por quem o experimentou na carne e na alma.
Varlam Chalámov reconstrói meticulosamente um inferno que só nós, humanos, somos capazes de criar. O derradeiro conto, “Riva-Rocci”, termina com a anistia para muitos daqueles enviados por Stálin aos campos de extermínio. Mas, há pouco espaço para sentimentos de alívio e liberdade. Mas nada é simples em seus relatos, e na partida do inferno, ele conta sobre o grupo que embarca sem comida. Com uma maioria de blatares, membros do crime organizado, os presos políticos libertados vão sendo mortos e sua carne consumida, até que não reste nenhum na chegada do navio ao porto. Não há palavra supérflua na sua literatura direta e brutal, não há recurso estilístico que não seja para nos conduzirão absurdo e para a dor que ele viveu e que, para escrever, certamente reviveu. Em “Noites áticas”, o autor explora as nuances da questão que permeia toda a obra – o que significa ser humano? — desde os limites mais corpóreos, até o mais espiritual. Conversa com Thomas More, que em sua “Utopia”(1516) determina “as quatro sensações básicas, cuja satisfação proporciona ao homem o prazer supremo” – a fome, a satisfação sexual, a micção e a defecação. Quão monstruosos são aqueles que massacram alguém nestas mais básicas necessidades? E, permanecerá humano o detento de Kolimá que se arrasta no limite da fome, na impossibilidade de mijar e defecar, de sentir qualquer desejo sexual? Sim. Apesar de esmagadas, dominadas, refreadas, um dia essas sensações ressuscitam, conforme Chalámov descreve a lenta recuperação da própria humanidade, já de volta a Moscou. Mas, para além de Thomas More, nos surpreende ao revelar que uma quinta necessidade humana: a fome de poesia, que, com exceção dos blatares, habita cada condenado.
Quando nossos ancestrais tomaram consciência da própria existência, não criaram apenas o monstro. Criaram paraísos e infernos. Em sua existência instintiva, o animal busca saciar suas necessidades fisiológicas e quando a morte chega, é surpreendido por um evento inevitável e sem mistério. Mas, para enfrentar um mundo que não mais se apresenta de forma natural, tornam-se necessárias explicações para uma existência que se revela como um violento, caótico e interminável pesadelo. A prosa crua de Chalámov arrebenta nossas explicações para o mundo dos humanos e, como espelho frio, nos devolve o terror do monstro que habita em cada um de nós.