Vivemos tempos monstruosos. Sinal disto são as muitas narrativas de terror, que ocupam cada vez mais espaço na produção de filmes e audiovisuais, na literatura, nas HQs e nos games, e mesmo na pintura e nas artes plásticas. Um bom exemplo é “Bile negra” (2017), de Oscar Nestarez. Neste livro, com a ajuda de uma psicanalista, o protagonista enfrenta os próprios horrores, que vêm na forma de delírios e de uma persistente depressão. A história, que poderia se desenvolver como uma narrativa de terror psicológico, entretanto, deriva por outro caminho, em que as alucinações do herói começam a transbordar para o mundo em redor. Podemos entender esse caminho narrativo como sintoma cultural de um mal que se espalha pela sociedade: a disseminação do medo do outro.
Essa derivação narrativa, em que o que aterroriza um indivíduo, ou um pequeno grupo de personagens, vai se espalhando “pelo mundo” na forma de transformação dos outros em monstros, também pode ser observada em outros casos, como em “Nós”, de Jordan Peele, “Ao cair da noite” (2017), ou em “Um lugar silencioso” (2018). Isso constitui um elemento central do Apocalipse Zumbi. Outros elementos desse Apocalipse são o desafio ao conceito de “humano”, a substituição do tempo linear (passado, presente, futuro) por um presente congelado, que se repete indefinidamente; o apagamento das identidades individuais e coletivas; a transformação das referências espaciais em um horizonte aterrorizante e intransponível. Até mesmo uma série como “Game of Thrones”, narrativa épica de fantasia, flerta com o Apocalipse Zumbi na atual temporada, quando um exército desses seres nem mortos, nem vivos, ameaça a permanência do mundo dos humanos.
Como nas histórias de zumbis, “Bile negra” cria um cenário em que amigos, parentes, vizinhos vão se transformando em seres malignos e irreconhecíveis. Baseada na Teoria Humoral, antiga teoria médica que sustenta que nossa saúde dependeria do equilíbrio entre os quatro humores – sangue, fleuma, bile amarela e bile negra – o terror eclode quando esta última passa a dominar as pessoas, escapando dos limites de seus corpos e levando-as a se comportar de forma violenta e cruel. A noção de humanidade fica abalada, conforme a monstruosidade se manifesta como algo que faz parte da essência de cada um, um descontrole interior que mistura o retorno do reprimido freudiano e a própria fisiologia humana. E como no mundo contemporâneo, o ódio e o ressentimento irrompem até naqueles que considerávamos afetuosos, razoáveis e racionais, avançando sobre um planeta que já não reconhecemos mais.