No quarto volume dos “Contos de Kolimá”, Chalámov adota um tom mais ensaístico para analisar o mundo do crime, que conheceu dentro das prisões e campos de trabalho soviéticos. Em “A invenção do monstro”, defino o gangster hollywoodiano como um monstro moderno americano, particularmente pela sua capacidade para borrar os limites entre realidade e ficção e ao se apresentar simultaneamente como herói e vilão. Em seus ensaios, porém, Chalámov se afasta da ficção para enfatizar a realidade brutal e absurda do crime organizado russo, descrevendo sua origem e evolução dentro do cárcere. Com uma objetividade impiedosa, conduz o leitor ao longo de um percurso monstruoso em todos os aspectos. Com ele, acompanhamos a formação do jovem bandido, a posição da mulher nesse universo criminoso e o estabelecimento violento de hierarquias dentro da organização; também descreve suas relações promíscuas com a hierarquia dos carcereiros e outros encarcerados. Não se afasta, neste percurso, do questionamento sobre o conceito de “humano”, que permeia os outros volumes, mas é aqui que a palavra “monstro” aparece com inquietante frequência.
No jargão desse universo, os criminosos organizados são conhecidos como “blatares”, “fráiers” são criminosos novatos e fora da organização, e aqueles que traíram as leis da bandidagem são “cadelas”. Os prisioneiros completamente esgotados, sua principal vítima, são “dokhodiagas”. Para um blatar, a mulher é “um ser desprezível, inferior, merecedor de espancamento e indigno de piedade”. Suas companheiras, prostitutas ou ladras, são comumente “emprestadas” para os chefes e passadas de mão em mão de acordo com o interesse dos bandidos, sem que se atrevam a resistir. O estupro coletivo é comum e a violação de meninas não é raro. Em “Sangue vigarista”, tendo passado um tempo numa mina apenas de mulheres, um blatar conta que o preço por sexo era todo o pão que ela pudesse comer durante o encontro. Mas diz que o levava congelado, para que a ela não conseguisse comer tudo até ele ir embora.
Com respaldo de sua organização criminosa, o blatar descarrega sua crueldade sem limites: rouba as últimas migalhas de um condenado exaurido, arranca o último trapo do corpo de um preso à mercê de temperaturas mortais, obriga outros encarcerados a trabalharem por ele, guardando para si as míseras recompensas pelo trabalho realizado. Para espantar o tédio, espanca dokhodiagas até a morte. Quando em liberdade, abusa da esposa e ensina os filhos a seguirem seus passos. Mas, para a ordem stalinista, os verdadeiros inimigos são os presos políticos, enquanto blatares e criminosos comuns são “amigos do povo”.
Em sua longa e atormentada experiência como preso político, Chalámov observa o quanto de bestialização se produz em pessoas sistematicamente submetidas à tortura física, à fome permanente, ao trabalho forçado sob temperaturas enregelantes, às humilhações sem fim, à perda de qualquer propriedade, a ter como opções apenas a morte rápida do espancamento ou do fuzilamento, ou a morte lenta do corpo e do espírito. Mesmo assim, por mínimo que seja, sempre resta um resquício de humanidade em cada condenado. Menos no blatar. Para a violência e perversidade deste, “não existe designação na língua dos homens”. Mas, sabemos, quando não encontramos um conceito para definir alguém, o que resta é a palavra “monstro”.