Um dos recursos do opressor é criar narrativas que caracterizam o oprimido como uma figura monstruosa. No mundo ocidental, especialmente a partir das grandes navegações, os negros têm sido representados como uma espécie inferior de humanos. Entre avanços e recuos, essa manifestação racista tem sido cada vez mais desafiada. Dois exemplos significativos dessa luta podem ser observados no Brasil e na França. Por aqui, uma foto inédita de Machado de Assis (1839-1908), encontrada pelo pesquisador Felipe Rissato em 2018, reacendeu a controvérsia sobre a cor da pele do maior escritor brasileiro de todos os tempos. Publicada na revista argentina “Caras y Caretas”, de janeiro de 1908, a foto mostra um homem com evidentes traços africanos. O embranquecimento do escritor se insere numa narrativa pseudocientífica originária da Inglaterra do século XIX, a eugenia. Baseada na crença de que a capacidade intelectual era hereditária, serviu para justificar o racismo e, mesmo, a eliminação das “raças inferiores”, isto é, não brancas. Trazida para o Brasil no começo do século XX, floresceu rapidamente entre uma elite de origem europeia e escravocrata. Neste contexto, compreende-se que um escritor tão talentoso e bem-sucedido fosse adquirindo, ao longo do tempo, uma compleição cada vez mais branca na imprensa, nos livros de história e, mais tarde, na mídia. Machado de Assis, neto de escravos e filho de pai negro e mãe branca, era uma afronta às teses da superioridade branca.
Em Paris, entre 26/3 e 21/7 deste ano, o Museu D’Orsay apresenta “O modelo negro: de Géricault a Matisse”, exposição que explora questões estéticas, políticas, sociais e raciais nas artes visuais desde a abolição da escravatura na França (1794), até os dias atuais. Pode-se observar como, a depender do momento histórico, pinturas mostram negros ora numa posição mais subalterna, ora numa situação de igualdade com as figuras brancas e, até, ocupando a centralidade do quadro. Há, também, a história de pinturas cujo título vai sendo modificado ao longo do tempo, de modo que a figura negra representada é inicialmente anônima, até, finalmente, adquirir nome próprio e identidade. Nesta exposição se destaca o caso de Alexandre Dumas (1802-1870). Famoso no mundo todo por livros como “O Conde de Monte Cristo”, “Os três mosqueteiros”, “O homem da máscara de ferro”, nascido perto de Paris, era neto do marquês Alexandre Antoine Davy de la Pailleterie, fazendeiro de cana de açúcar no Haiti, com Marie-Césette Dumas, uma de suas escravas negras. No fim dos anos 1820, teve atenção da imprensa numa cobertura extensa e chocante. Ao acentuar seus “traços estranhos”, as caricaturas às vezes mostravam simpatia por parte do caricaturista, mas na maioria das vezes exibiam discriminação e cruel preconceito. Como Machado de Assis, sua representação visual tendeu fortemente ao embranquecimento, como fica evidente nas numerosas imagens expostas no museu. Entretanto, em “Le capitaine Pamphile” (1839), assumiu sua herança racial. Em “La Revue des Colonies” (1838), condena a escravidão, declarando que queria que soubessem de sua posição em todo lugar onde tinha “irmãos de raça e amigos de cor”.
Apesar de seu comprometimento maior com a fidelidade aos fatos, os livros de história, o jornalismo e mesmo a ciência também constroem uma narrativa sobre o mundo, muito à maneira das narrativas ficcionais. Em ambos os campos, a representação do negro tem sido majoritariamente aquela de um ser sub-humano, intelectualmente inferior, sexualmente assustador, fisicamente ameaçador: um monstro. Mas, como em toda narrativa de monstro, a motivação inicial de separar “humanos” e “monstros” é revertida pelos traços inegavelmente humanos destes, e pela evidente monstruosidade daqueles.