MEDO DE MULHER

A HQ “A teia escarlate”, (Eduardo Kasse e Raphael Fernandes, texto/Clayton InLoco e Daniel Canedo, desenhos), apresenta figuras femininas no centro de sua trama. Monstras costumam ficar em segundo plano em nosso imaginário, dominado por figuras masculinas como Drácula, Frankenstein e sua criatura, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Leatherface, Michael Myers e tantos outros. Mas, embora suas histórias tenham alcançado menor potência iconográfica, as monstras habitam nossas ficções há muito. As duas versões do “Gênesis” sobre a criação da humanidade fizeram surgir, na Idade Média, a lenda de Lilith, primeira esposa de Adão. As bruxas estão em toda parte, nos contos de fadas, nas lendas europeias, nos relatos sobre os processos de Salem e nas mais variadas fantasias de terror contemporâneo. Também não faltam vampiras, como Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu, e as sensualíssimas e terríveis servas do Conde, no livro de Bram Stoker.

Na ficção das culturas ocidentais, o monstro masculino muitas vezes representa os aspectos mais sinistros do patriarcado. Isso explica os muitos casos em que o monstro persegue, aterroriza e tortura as personagens femininas. Numa sociedade regida pela Lei do Pai, o que deve ser mantido sob controle é a sexualidade das mulheres. Uma forma de exercer esse controle é impor a elas o cumprimento de uma série de comportamentos relativos à maternidade. Na sociedade vitoriana, por exemplo, a mulher de classe média devia ser doméstica, pura, respeitável, educadora e guardiã da moral, mãe e fonte da estabilidade social, além de piedosa, paciente, frugal e industriosa, ativa e diligente, religiosa e temente a Deus, mantendo-se confiável e respeitável. Sempre ocupada, não tinha tempo para o lazer, nem para o sexo.

Em uma tradição literária dominada por homens, portanto, é de se esperar que as monstras sejam caracterizadas como donas da própria sexualidade e desafiadoras do suposto instinto materno. A monstruosidade desses comportamentos está na ameaça à estrutura social dominante, colocando em questão, principalmente, as referências da identidade masculina. Assim, segundo a lenda, Lilith e Adão viviam brigando, porque ela insistia em montá-lo durante o sexo, numa posição dominadora. Sem acordo, ela o abandona no Éden, e desobedece à ordem de Deus para que retorne. Inspiradas nessa “primeira Eva”, surgiram as histórias de súcubos, demônios com aparência feminina que invadem os sonhos dos homens para ter relações sexuais, enquanto lhes roubam a alma. Enquanto levam suas vítimas ao gozo e à morte, engravidam e geram crianças demoníacas. Em algumas dessas narrativas, também são representadas como assassinas de bebês. Outro exemplo é Lucy Westenra que, ao se transformar em vampira, se torna assustadoramente sensual e sedutora, enquanto assombra as ruas de Londres alimentando-se do sangue de crianças.

Tais são os elementos monstruosos que encontramos em “A teia escarlate”, em que Neith, uma deusa que se transforma em gigantesca aranha, se entrega em orgias e, ao ser engravidada por um guerreiro romano, gera uma filha igualmente monstruosa, que assombrará homens e mulheres através dos séculos.

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