Nas primeiras décadas do século XX, após o fim da monarquia e o estabelecimento da Primeira República (1889-1930), nossa intelectualidade se agitava à procura de uma nova definição do Brasil e da ideia de brasilidade. Expoente neste debate foi Monteiro Lobato, tanto em sua popularíssima literatura infantil, com os 23 volumes do “Sítio do Picapau Amarelo” (1921-1947), quanto em sua produção adulta. Em sua coleção de contos, ensaios, artigos de jornal e em seu único romance, “O presidente negro” (1926), Lobato discute e propõe um conceito de brasilidade a partir de temas como a língua portuguesa, a crítica à intelectualidade brasileira, a Guerra do Paraguai, a vida nas pequenas cidades do interior, a modernidade, a política e o governo, a capoeira e o futebol, a literatura e o cinema… enfim, Lobato analisa o brasileiro do ponto de vista físico, cultural, social, político, econômico e tecnológico.
Em “Dialeto caipira” e “O dicionário brasileiro”, defende a valorização da nossa forma de falar e escrever o idioma lusitano. Para ele, uma língua se conforma ao ambiente, aos costumes e aos sentimentos do povo que a fala, expressando sua visão de mundo e sua identidade. Em “O 22 da Marajó”, aponta o culto à capoeira, que perderia popularidade devido à repressão do Estado, e sua substituição pelo futebol no coração de nossas massas. O atraso tecnológico e a pobreza intelectual vigente nas pequenas cidades brasileiras são objeto frequente de sua atenção, como em “Cidades mortas”, coletânea de narrativas breves durante a crise do café. No conto “Urupês”, decreta a morte de Ceci e Peri (“Iracema”, 1865): no lugar do bom selvagem de José de Alencar, a realidade de um “selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante”. Em “Bocatorta”, o personagem que dá título ao conto, se apresenta como verdadeiro monstro. Filho de escrava, feio, estúpido e miserável, personifica o negro como ameaça ao desenvolvimento e modernização do país. O preconceito de Lobato contra a miscigenação aparece nos pesadelos da filha do fazendeiro. Em seus sonhos, a jovem foge, aterrorizada, dos beijos do negro bestializado.
Apesar de ver na miscigenação um obstáculo à construção de um Brasil moderno, Lobato, em geral, se refere com respeito aos personagens negros de suas narrativas. Entretanto, em “O presidente negro”, o racismo aparece com toda violência. Nesse romance de ficção científica, Dr. Benson, um cientista brasileiro, inventa o porviroscópio, aparelho que permite visitar o futuro como quem assiste imagens de TV. Depois de sua morte, Miss Jane, sua filha, relata a Ayrton, personagem narrador, os acontecimentos em torno das eleições presidenciais dos EUA no ano de 2228. No futuro, a população americana se compõe de dois terços de “arianos” e um terço de negros. Politicamente, entretanto, os brancos se dividem em um Partido Feminino e um Partido Masculino, enquanto o outro terço da população é representado pela Associação Negra. As lideranças das mulheres e dos homens brancos buscam o apoio de Jim Roy, o líder negro. Na fantasia de Lobato, todos os negros passam por um processo de branqueamento, desejosos de parecerem mais evoluídos. Por fim, o candidato negro consegue ser eleito, mas as consequências para sua “raça” acabarão por se revelar catastróficas.