A angústia existencial, que nos acompanha desde que nossos ancestrais adquiriram consciência da própria existência, nos condena a sempre buscar, no outro e em nós mesmos, elementos de humanidade e as sombras da monstruosidade. Tendemos a pensar: aqueles que se parecem comigo são humanos, mas ao estranho, ao diferente, olhamos com desconfiança, como se trouxessem em si o que cremos monstruoso. E o que achamos monstruoso no Outro pode ser físico, como a cor da pele, ou moral, como o código de valores associados a uma religião, ou cultural, com costumes e comportamentos que expressam uma visão do mundo e da vida distinta daquela que trazemos. No mundo da ficção e fora dele, apontar elementos de monstruosidade no outro costuma revelar o lado monstruoso de quem o desprezou como menos que humano.
Ao longo da história, essa angústia e sua consequente procura por referências de identidade de muitas formas nos organizou, no plano da subjetividade de cada um, mas também no plano social, como a formação de famílias, comunidades e outras estruturas sociais. Com o fim dos tempos medievais e o projeto racionalista que fundou a Modernidade, criaram-se os Estados nacionais. A Razão passou a fundamentar os critérios de soberania. A ação repressiva e punitiva do Estado se justifica como combate à quebra das regras estabelecidas, isto é, como resistência ao irracional. Isso transparece nas histórias clássicas de monstros da Modernidade, como a criatura de Frankenstein, Drácula, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, por exemplo. Em todos eles, a monstruosidade se manifesta como uma negação do mundo racional, e isto justifica sua destruição.
Em “Coração das trevas”, a narração do Capitão Marlow e o horror de Kurtz desmentem a suposta racionalidade do colonizador europeu, que explora, escraviza e mata os povos africanos com base no direito do homem racional sobre seres irracionais e, portanto, não humanos. Em “Apocalipse now” (1979) a mais cultuada e bem-sucedida adaptação dessa história, Francis Ford Coppola atualiza o discurso racional dos Estados nacionais europeus do século XIX para o discurso das potências ocidentais do século XX. No filme de Coppola, a Razão dos EUA se opõe à suposta irracionalidade do vietnamita, e dos asiáticos em geral. A perspectiva é do Capitão Willard (Martin Sheen), cuja missão secreta é avançar pela selva do Vietnam até cruzar a fronteira do Camboja, onde se escondeu o desertor Coronel Kurtz (Marlon Brando). Um dos mais brilhantes oficiais americanos, o Coronel se rodeou de um exército de nativos, que comanda como se fosse um deus. Em sua longa e opressiva jornada, Willard se depara com uma sucessão de personagens e eventos que compõem um universo alucinatório. Personagens como o Cornonel Kilgore (Robert Duval), que toca Wagner, enquanto lança mísseis e napalm sobre aldeias onde vivem mulheres e crianças, liberando a praia para surfar no rio. Eventos como um show em plena selva, em que coelhinhas da “Playboy” se apresentam diante de soldados drogados, que avançam enlouquecidos sobre o palco. Desde o momento em que recebe suas ordens do alto-comando, até o fim de sua missão, Willard nos exibe, com seu olhar estupefato, a completa irracionalidade do invasor imperialista.
O pensador camaronense Achille Mbembe apresenta uma explicação alternativa para o exercício da soberania. Em “Necropolítica” (2018), ele propõe que um dos pilares da expressão de soberania está no poder e na capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer. Matar ou deixar viver constituem os limites e atributos fundamentais da soberania. Nos EUA, o Estado determina franqueia o porte de armas entre civis, executa a pena de morte, e invade países, massacrando suas populações. Diferentes países aplicam a pena de morte a homicidas e a traficantes, a homossexuais, a cidadãos com diferentes posições políticas, e por tantos outros motivos. Desde tempos imemoriais, matamos movidos pelas paixões, pela honra, em nome de Deus, pela defesa dos costumes, para sobreviver.
Quando é humano matar? Quando, matar é monstruoso?