NÓS, O MONSTRO

“Eles se parecem exatamente como nós. Eles pensam como nós. Eles sabem onde estamos”. É assim que Adelaide Wilson, a personagem “normal” de Lupita Nyong’o, explica para sua família quem são aquelas pessoas que os ameaçam. Ela e o resto da família Wilson – o marido Gabe (Winston Duke), a filha adolescente Zora (Shahadi Wright Joseph), e o filho menor Jason (Evan Alex) – se deparam com seus “doppelgångers”, seus duplos, durante as férias na praia. Assim, “Nós” (2019), novo filme de Jordan Peele, se insere na rica tradição de personagens duplos na literatura e no cinema.

Os Wilson se apresentam como uma família classe-média americana bastante convencional, neste filme de terror que, como bem ensinou Hitchcock, sabe criar suspense omitindo dos personagens informações que são fornecidas à plateia: vemos o perigo se aproximar, torcendo para que nossos heróis também percebam, a tempo de se salvarem. Mas, não são apenas os Wilson que se deparam com seus duplos ameaçadores. Conforme a narrativa avança, vamos descobrindo que por todo o país a população se defronta com o mesmo problema, e o filme de Peele se constrói como uma meticulosa alegoria dos Estados Unidos e do sonho americano (o título original “Us”, é um trocadilho intencional com a sigla do país, US, de United States). Todos esses duplos, que emergem de um mundo subterrâneo, funcionam como uma metáfora horripilante para os despossuídos e abandonados, cuja existência permite que o resto da população leve uma vida complacente, consumista e alienada. Todos os esmagados pelo sistema e pela ideologia que organiza aquela sociedade estão representados: os negros, os indígenas, os subempregados, os imigrantes ilegais, os pobres em geral.

Essa me parece ser a grande contribuição deste diretor (também roteirista e produtor) para as histórias de “doppelgångers”, isto é, ao contrário da tradição, o duplo não assombra apenas um personagem, mas toda a sociedade. “Nós” é um espelho, erguido por aqueles sem qualquer chance de sair da miséria, para que os membros afluentes da sociedade vejam de quem e do que depende sua vida de fartura. Neste sentido, se assemelha aos filmes de zumbi, em cujo apocalipse a humanidade inteira se depara com seu duplo desestabilizador. Como nos filmes de zumbi, nos vemos diante do infamiliar freudiano, e ao longo da história somos convocados a encarar o espelho, forçados a admitir que todos aqueles monstros são pessoas muito parecidas com cada um de nós.

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