Há setenta mil anos, nossos ancestrais começaram a se perguntar sobre seu lugar no mundo, sobre o sentido de sua existência, sobre sua própria identidade. Então, imaginaram o monstro, atribuindo a sua figura toda forma física, todo comportamento inaceitável e repugnante, tudo aquilo que se opõe à definição de “humano”.
E hoje, como definimos o que é humano? No mundo contemporâneo, dá-se o Nobel da Paz ao chefe de estado do império que dissemina o caos e a barbárie ao redor do planeta, que destrói países inteiros em nome da liberdade. Líderes europeus incluem em suas plataformas politicas a xenofobia, classificando imigrantes como sub-humanos, como monstros que ameaçam a civilização. No Brasil, hordas berram pela ditadura e pela repressão em nome da liberdade. Médicos renegam o juramento de Hipócrates e se recusam a atender os doentes por razões ideológicas. Gangsteres eleitos democraticamente se reúnem para um golpe de estado. E mais hordas manifestam seu racismo, seu ressentimento contra os pobres, sua homofobia, sua misoginia, seu ódio sem fim, em nome da moral e dos bons costumes. Líderes religiosos pregam a violência e a morte em nome de Deus. Juízes abandonam o estado de direito em nome do combate à corrupção. A mídia nada informa, apenas deforma, agride, assalta, conspira, violenta. Amigos, parentes, colegas, vizinhos subitamente se transformam em inimigos, pregando a submissão e o massacre de todos que não homenageiam a ignorância, a repressão, a negação da história.
Vivemos o fim de um mundo, que um dia foi das Luzes e da Razão, mas que chafurda nas degolas registradas em imagens que circulam e assombram sem fim. Não se proclamam mais utopias. De que adianta o discurso, qualquer discurso, quando todas as falas refletem a ausência brutal de sentido?
O monstro da contemporaneidade é o zumbi. Vivemos o apocalipse zumbi, esse monstro que sempre vem em hordas, devorando as conquistas da civilização, devorando a História, a identidade de cada um e sua própria identidade. O zumbi devora a tudo e a todos, como o capitalismo atual devora todo o planeta. O zumbi é o apagamento de tudo, de todas as referências que nos permitiam entender o mundo, é o apagamento de quem somos e dos sonhos do que poderíamos vir a ser.
Resta, ainda, o horror da ficção como refúgio. Ao menos, depois da cena final, depois de virada a última página do livro, posso voltar ao mundo normal.
Ou não?