Nem sempre o monstro aparece em histórias de terror ou ficção científica. Monstros servem, afinal, para desafiar ideias e identidades estabelecidas, e para isso não existe gênero específico. Monstros podem ser encontrados em comédias, melodramas, thrillers, e também em histórias de aventura. É o caso de “Coração das trevas” (1902), uma narrativa de viagem e exploração ao estilo do século XIX e início do século XX, mas sombria como poucas. Neste clássico de Joseph Conrad, somos conduzidos pelo protagonista por um mundo de escuridão inescrutável, que se espalha entre os viajantes como um monstro, revelando a escuridão de cada um.
Entediado após um período de descanso em terra, Marlow consegue um contrato com uma empresa belga, exploradora de marfim na África. Sua missão é assumir como capitão de um barco a vapor, para subir o Rio Congo em busca de Kurtz, alto funcionário da empresa com reputação de ser um idealista com muitos talentos, que está doente e precisa ser resgatado. Mas, encontra o barco afundado e até ser recuperado passam-se semanas, obrigando o novo capitão a permanecer no primeiro entreposto da empresa, na foz do rio. Marlow se depara com agentes alienados e brutais, que forçam nativos a trabalhar até cair, esperando a morte em agonia. As histórias que ouve sobre Kurtz transpiram a admiração e inveja.
Finalmente, parte. Seguem com ele um gerente para substituir Kutz, e um grupo de agentes exploradores, que ele chama de peregrinos, por sempre carregarem um cajado de madeira. A tripulação é composta por canibais. Avançam lentamente entre margens silenciosas cercadas por uma obscura floresta, de onde saem ataques com flechas lançadas por inimigos invisíveis, em meio a nevoeiros impenetráveis. A comida da tripulação estraga, mas os canibais resistem à fome, mesmo com a recusa dos “peregrinos” em repartir sua comida.
Próximos do destino, encontram um entreposto em chamas e sob ataque. Os passageiros atiram mal e o timoneiro é morto, mas os agressores fogem quando ouvem o apito do barco. Resgatam um jovem mercador russo, meio maluco, vestindo uma roupa cheia de retalhos coloridos, que aumenta a sensação de irrealidade. Entusiasmado admirador de Kurtz, conta a Marlow histórias sombrias deste homem que se tornou uma espécie de deus, temido e idolatrado por uma tribo, comandando ataques brutais contra tribos rivais para roubar marfim. A tensão entre nativos e exploradores é enorme. No interior da cabana, Marlow ouve as confidências do moribundo, que em seus últimos momentos confia ao desconhecido seu legado. Em meio ao delírio, revela uma visão lúcida e desencantada da cobiça que comanda a marcha da humanidade.
Na fase de exploração colonial do Imperialismo europeu, o continente africano era descrito como território misterioso, cheio de criaturas selvagens. Nos relatos da imprensa, nas histórias de aventura e nos relatos oficiais, o explorador branco aparecia como civilizado e valoroso, enfrentando heroicamente povos monstruosos numa terra de trevas. Mas no relato de Marlow desfilam homens covardes, ineptos, tolos e violentos. Na sequência final, o capitão é recebido em Londres, pela noiva de Kurtz, que dedilha ao piano, sem imaginar o sangue e a brutalidade contidos nas teclas de marfim.
Conrad dissolve todos os parâmetros morais do ocidente, numa aventura onde não há heróis. No testemunho assombrado de Marlow, as trevas da selva impenetrável conspiram para revelar o negror que habita o coração de cada um. E ao encerrar a derradeira página, ressoam na mente do leitor as últimas palavras de Kurtz: “O horror! O horror!”